Arjan Martins | Et Cetera

22 Outubro - 21 Dezembro 2016 Rio de Janeiro
Apresentação

 

As pinturas de Arjan e suas fontes fotográficas

 

Na última ocasião que encontrei Arjan ele levava um livro de Sepp Werkmeister que, nos anos sessenta, retratava os habitantes de Nova Iorque. Sendo muitos desses do bairro do Harlem, ali haviam imagens de homens, mulheres e crianças negras humildes, contudo dignas, nas quais Werkmeister os retratava no trabalho, no lazer ou deslocando-se pela cidade. Ao nos depararmos com tais imagens percebemos que essas foram tiradas durante o movimento dos direitos civis. Contudo, até onde observei, não haviam referências diretas ao conflito racial, às imagens de segregação ou aos protestos. Ao invés disso, as imagens eram focadas na normalidade do cotidiano. As dificuldades da existência estavam presentes de maneira sutil, não como tema central, mas sim um aspecto que transpirava através do olhar particular em um rosto, um detalhe ou em segundo plano. A contenda da vida era justaposta, por exemplo, com a elegância do vestuário das pessoas e a dignidade expressada em seu estilo. De certo modo, isto me recordava de um outro livro que eu havia lido recentemente, o 'The Birth of Cool', de Carol Tulloch (2016), que traça as influências de imigrantes negros do Caribe sobre a moda britânica a partir dos anos cinquenta até hoje. Repentinamente notei a própria vestimenta de Arjan, composta por uma calça de linho branco, sandálias de couro e uma elegante camisa folgada: quiçá uma adaptação tropical.

 

Eu já estava ciente de que como pintor Arjan se utilizava de fotografias — normalmente de pessoas — e que essas imagens apareciam e reapareciam em suas pinturas nos mais variados contextos em suas composições. Normalmente, imagens advindas de uma mesma fonte fotográfica são repetidas em diferentes pinturas, como sujeito principal ou como detalhe em uma tela maior. Porém, o que parecia inicialmente distinto nas imagens do livro de Werkmeister quando comparadas com aquelas que me eram familiares em suas pinturas, era o fato de que essas imagens davam a impressão de serem distantes das próprias referências culturais de Arjan. Anteriormente em suas pinturas, as pessoas que habitavam as composições eram sujeitos tipicamente brasileiros ou brasileiros negros. Era como se o artista houvesse conscientemente traçado aspectos de sua própria história étnica, desenhando assim a formação de uma identidade, de aspectos de uma cultura, de como seu passado ancestral tem sido problematicamente posicionado dentro da cultura e história brasileira ou talvez, de forma mais pungente, de como estes personagens enfatizam as problemáticas narrativas históricas que situam tais representações na arte brasileira. Arjan parecia assim ter elaborado um projeto de resgate dessa iconografia, apoderando-se dessas representações enquanto exibia a limpeza étnica do circuito da arte contemporânea. Levando essa leitura em consideração, a pergunta que me acometia era, portanto: qual relação poderia haver entre os temas e personagens prévios de Arjan e aqueles elegantes trabalhadores negros de uma Novo Iorque antiga?

Em um prefácio para a compilação das fotografias de Paul Gilroy sobre a diáspora afro-caribenha no Reino Unido, Stuart Hall (2007) descreve o projeto de coleta dessas imagens como um que possui propósito 'interrogativo':

 

A imagem estática apreende o fluxo do tempo, congela o evento, possibilitando a nós um olhar mais longo, mais detalhado. Mas ela não é completa — ela não pode, afinal, 'falar por si mesma'. O que significa não é o texto fotográfico em si, mas sim a maneira em que ele é apanhado em uma rede de correntes de significados que sobrepõe a suas feições sobre a monta de outros discursos, assim revelando diferentes significados. É sentido que pode ser apenas completo por meio de nossas interrogações.

 

Acredito que exista algo dessa abordagem interrogativa no interesse de Arjan pela fotografia como fonte de suas pinturas. É com esta abordagem que Arjan procura diferentes significados. É assim que ele inscreve essas fotografias de pessoas de diferentes épocas e lugares sobre a relevância de outro discurso que, ainda assim, divide uma história comum. É aqui que a pintura se torna um meio com possibilidades distintas. Um bom exemplo disso são as inúmeras reproduções de Arjan retiradas de uma única fotografia retratando uma jovem levantando sua mão à boca. Cada vez que essa imagem é pintada a sua expressão é distinta, ora demonstrando timidez, ora um certo ar de malícia. Enquanto a fotografia pode demonstrar tais ambivalências, as reproduções pintadas acentuam essas ambivalências na medida que — e particularmente quando expostas lado a lado — o decisivo momento único capturado pela câmera se torna verdadeiramente múltiplo, em camadas.

 

A mesma jovem aparece no canto superior direito de outra tela. Ela é desproporcionalmente larga, pairando sobre uma composição que inclui uma caravela portuguesa de ponta cabeça, com suas velas infladas pelo vento, fazendo com que esta se assemelhe a um tórax inflado e cheio de si. Inscrito sobre as velas a cruz portuguesa, a Vera Cruz, pairando de maneira ameaçadora como se anunciasse o primeiro nome dado à terra que vemos no horizonte e que hoje chamamos de Brasil. A coroa, alocada na esquerda da tela e à mesma altura que a cabeça da jovem, é enquadrada por um arranjo de triângulos, formado pelas cordas da plataforma da embarcação, sua polia, a coroa e pela cabeça da jovem. Não é malícia que agora transpira na face da menina mas sim medo: o horror que é provocado pela referência triangular conjurada pela iconografia e composição da pintura.

Em outra pintura encontramos a mesma estrutura de composição, tal qual a do navio de ponta cabeça e a silhueta da costa da cidade natal de Arjan, o Rio de Janeiro. Outra jovem segura um livro, ou talvez uma pintura, formando uma disposição triangular similar, embora invertida, entre a coroa e a polia. A diferença principal aqui é o navio, que não só é representado de lado ao invés de frontalmente, que também não é mais uma caravela portuguesa e sim um veleiro britânico, o Cutty Sark.

 

Em um texto anterior (Arjan e o conto da saia justa) eu já havia dado conta da aparente inconsistência histórica da aparência do Cutty Sark em pinturas que claramente remetiam a história do tráfico negreiro no Brasil. Para esclarecermos esta inconsistência, basta resumirmos os pontos principais feitos concluindo o tema. Não devemos esperar de um pintor contemporâneo uma 'precisão' histórica comparável, por exemplo, às representações da escravidão no Rio de Janeiro durante o início do século XIX de Jean-Baptiste Debret. A fotografia, mesmo com suas insuficiências, assumiu esse papel de documentação. Como eu havia ressaltado durante aquele ensaio, apesar de o Reino Unido ter se promovido como uma nação abolicionista, o país esteve profundamente implicado no comércio de escravos. As imagens fotográficas que aludo anteriormente, nos livros de Tulloch e Gilroy, são consequências diretas disso, assim como a própria origem do nome Cutty Sark. Mesmo o mais prestigioso museu de arte moderna e contemporânea britânico, o Tate, foi fundado com os lucros gerados a partir da produção de açúcar e do comércio triangular. As pinturas de Arjan, portanto, não nos revelam uma história, mas sim como a história é apresentada aqui e agora.

Ao escrever este pequeno ensaio, o periódico The Times anuncia em sua primeira página que o governo britânico requereu que todas as firmas britânicas listem seus empregados estrangeiros. Os temas de Arjan são ainda mais significantes neste momento que a horrenda face do racismo e xenofobia retornam no placo mundial através do discurso político dominante. É precisamente por conta das múltiplas origens de suas fontes fotográficas que sua pintura nos convida a pensar, não em um evento histórico específico ou particular, mas sim de forma geral. Por exemplo, podemos nos perguntar quantos de nossos dirigentes políticos ou instituições aqui no Reino Unido, nos EUA ou no Brasil sustentam posições de poder baseadas em privilégios que remetem ao comércio de escravos e como esse privilégio ainda se legitima por meio de preconceito. Assim as pinturas de Arjan, mais do que qualquer fotografia, testemunham o perverso anacronismo da contemporaneidade.

 

Michael Asbury, 5 de Outubro de 2016

 

 

 

TULLOCH, Carol. The birth of cool: style narratives of the african diaspora. NY, London: Bloomsbury, 2016

HALL, Stuart. Preface. In: Gilroy, Paul. Black Britain: a photographic history. London: Saqi, 2007

Vistas da exposição
Obras
  • Arjan Martins, Etcetera, 2016
    Arjan Martins, Etcetera, 2016
  • Arjan Martins, Sem título [Untitled], 2016
    Arjan Martins, Sem título [Untitled], 2016
  • Arjan Martins, Rio Setecentista, 2013
    Arjan Martins, Rio Setecentista, 2013
  • Arjan Martins, Atlântico, 2016
    Arjan Martins, Atlântico, 2016
  • Arjan Martins, Etcetera, 2016
    Arjan Martins, Etcetera, 2016
  • Arjan Martins, Sem título [Untitled], 2016
    Arjan Martins, Sem título [Untitled], 2016